Golpe Militar: primeiro de abril?
Como
um movimento de militares que, sem comando único ou propósito definido,
conspirou contra a democracia e, em menos de 24 horas, derrubou o presidente do
Brasil
Sérgio Gwercman | 01/04/2004 00h00
O presidente João Goulart atendeu o
telefone. Era manhã de 31 de março e ele estava no Palácio das Laranjeiras, no
Rio de Janeiro. Do outro lado da linha, falava o senador Arthur Virgílio.
“Presidente, o Almino (Affonso, líder do PTB, o partido do presidente) está
dizendo que há movimentação de tropas.” Goulart consultou seu chefe do Gabinete
Militar, general Assis Brasil. “O Mourão deslocou as tropas em exercício
militar”, respondeu o general. O presidente então voltou ao telefone. “Isso é
coisa da oposição que quer tumultuar”, disse. Satisfeitos com a resposta,
Virgílio e Affonso tomaram um uísque para comemorar.
Ao longo do dia, as notícias só
fariam colocar água na bebida dos dois políticos. Começava a ficar claro que
Mourão (o general Olympio Mourão Filho) não estava liderando simples jogos
militares. Suas tropas marchavam para o Rio de Janeiro com o objetivo de
derrubar o governo. Nas bancas da cidade – que apesar de não ser mais a
capital, continuava sendo o termômetro das ações políticas do país e sede de
seu comando militar – , o jornal Correio da Manhã dava destaque em sua primeira
página para um editorial intitulado “Basta!” – nenhum brasileiro precisava de
mais informações para saber que o destinatário da mensagem era o presidente.
Entre os autores do texto, os jornalistas Carlos Heitor Cony e Otto Maria
Carpeaux. O poder de João Goulart estava por um fio.
Entre os oficiais mais importantes do
país, crescia as adesões ao movimento detonado por Mourão. E ninguém, militar
ou civil, parecia seriamente disposto a pegar em armas para defender o regime.
No fim da noite, Goulart mais uma vez foi chamado ao telefone. Era o general
Amaury Kruel, chefe das tropas de São Paulo e Mato Grosso. Ele exigia que o
presidente rompesse com a esquerda. “General, eu não abandono meus amigos”,
respondeu Goulart. “Se essas são as suas convicções, eu não as examino. Ponha
as tropas na rua e traia abertamente”, completou. Kruel desligou o telefone e
aderiu ao levante. O dia seguinte amanheceu com cinco tanques de guerra protegendo
o Palácio das Laranjeiras, com seus canhões preparados para atirar. Para quem
via de fora, era um sinal de força do governo. Para quem sabia o que estava
ocorrendo, representavam uma das últimas linhas de defesa de Goulart.
O general Kruel havia acabado de
evidenciar a falência do poder militar da presidência. Estava arruinado o
“dispositivo” montado por Assis Brasil, como ficou conhecido o sistema de
nomeações e promoções que colocou aliados do governo nos cargos mais
importantes das Forças Armadas. A idéia era ter as tropas ao lado do presidente
em caso de um levante da direita. Não era o que estava ocorrendo.
Jango, apelido que o presidente
carregava desde a infância, perdia não só apoio militar, mas também o político.
Num país cada vez mais polarizado entre a direita e esquerda, Goulart
desagradava os dois lados. No último mês, no entanto, era acusado de aderir aos
ventos que sopravam do leste europeu. Prometia conduzir as “reformas de base”,
antiga exigência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que incluía a reforma
agrária e o controle das remessas de lucros das multinacionais. Com isso,
perdeu o apoio da classe média e dos empresários. Também viu-se abandonado
pelos militares ao tolerar a revolta da baixa patente, que colocava em xeque a
hierarquia dentro das Forças Armadas.
Aos olhos da oficialidade, Goulart
selou seu destino na noite de 30 de março, quando participou de um comício para
suboficiais e sargentos no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. O grupo estava
rebelado e contestava publicamente o comando militar. A presença do presidente
num evento como esse referendava a postura dos revoltosos. Sem economizar no
tom do discurso, Jango foi direto e falou sobre a possibilidade de um golpe.
“Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe
das reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos o Congresso
fechado. Queremos apenas que os congressistas sejam sensíveis às mínimas
reivindicações populares”, disse.
O discurso era música para os
conspiradores que preparavam a derrubada do governo, entre eles peixes graúdos
como o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Castello Branco, e o
governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. Não havia mais o que esperar, até
porque, no momento do discurso, o general Mourão havia se rebelado em Juiz de
Fora. Para eles, era preciso retirar urgentemente o país do caminho da esquerda
e protegê-lo do golpe que se armava dentro do Palácio do Planalto. A cerca de
um ano das eleições presidenciais, eram grandes as evidências de que o grupo de
Goulart tramava uma manobra para garantir mais um mandato ao presidente, o que
era proibido pela Constituição. “Se não dermos o golpe, eles o darão contra
nós”, dizia o então deputado pela Guanabara Leonel Brizola.
Sem poder contar com a direita, a
possibilidade de um golpe janguista minava a simpatia da esquerda. Goulart
chegou a abril de 1964 contando com o apoio de seu partido, o PTB, de aliados
como o PCB e pouco mais que isso. Pior: todos acreditando cegamente que o
“dispositivo militar” garantia a permanência do presidente no poder. Tal crença
imobilizou qualquer possibilidade de reação. Ao saber que uma greve em repúdio
ao golpe militar fora convocada às pressas para o dia 1º, o líder comunista
Luiz Carlos Prestes tentou interceder contra o movimento, argumentando que o
governo tinha força militar para controlar os rebelados.
Não tinha e a greve geral não surtiu
efeito. Na Guanabara, por exemplo, a paralisação dos serviços de transporte
inviabilizou a manifestação de apoio a Goulart marcada para a Cinelândia. Sem
ter como se locomover, apenas 4 mil pessoas enfrentaram a chuva forte que caía no
Rio de Janeiro para ir ao local. Uma tropa do Exército, que a princípio havia
sido recebida com aplausos, tratou de dispersar a multidão com tiros para o
alto.
Greves e manifestações. Era tudo que
a oposição ao golpe militar propunha para enfrentá-lo. Segundo o jornalista
Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada, quando teve uma proposta aberta
para pegar em armas, a esquerda demonstrou falta de disposição para qualquer
forma de combate que não o político. “No fim da tarde do dia 31, o chefe do Gabinete
Civil, Darcy Ribeiro, convocou o deputado Marco Antônio Coelho, do PCB, para
uma conversa no Palácio do Planalto.
Colocou sobre a mesa uma oferta de
ceder submetralhadoras para os comunistas resistirem ao levante militar.
Apresentou ainda uma lista de políticos que deveriam ser executados, incluindo
os presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado e parlamentares”,
escreveu. O PCB recusou o convite.
Pouco antes do meio-dia, Goulart
recebeu, por telefone, o pedido de demissão do ministro da Guerra, Jair Dantas
Ribeiro. Era mais um que aderia aos golpistas. Jango deixou o Rio de Janeiro e
voou para Brasília. “Isso aqui está uma ratoeira”, afirmou para um assessor.
Estava mesmo. Logo após o presidente Goulart deixar a cidade, o I Exército, que
agrupava todas as tropas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo,
aderiu ao levante. A essa altura, as tropas rebeladas provavelmente já eram
mais numerosas e estavam em melhor situação de combate do que as legalistas.
Para isso, elas nem sequer precisaram participar de uma troca de tiros.
Mourão e Luiz Carlos Guedes, os dois
militares que iniciaram o golpe, já não comandavam mais o movimento. Escondido
num apartamento em Copacabana, o novo líder, marechal Castello Branco,
“confiscou” a linha do vizinho e fez do telefone sua arma de combate. Ganhava
praticamente uma nova adesão para cada chamada. Perto das 18 horas, deixou a
clandestinidade e começou a circular livremente pelo Rio de Janeiro. A cidade
estava dominada. Às 20 horas, ele e o general Arthur da Costa e Silva
encontraram-se no quartel-general para discutir a divisão do butim de guerra,
ou seja, quem comandaria o país dali para frente. Castello ficaria com a
presidência. Costa e Silva, um até então desconhecido, seria o comandante do
Exército. Cargo que, dali para a frente, seria cada vez mais relevante.
Na capital federal, Jango não
encontrou nada que o fizesse acreditar que poderia continuar no cargo. Com o
clima de fim de governo, embarcou para o Rio Grande do Sul perto das 23 horas.
A viagem serviu para o Congresso Nacional considerá-lo deposto, mesmo que isso
significasse passar por cima da Constituição, que declarava vago o cargo apenas
quando o presidente deixasse o país. Ranieri Mazzilli, presidente do Congresso
e sucessor legal de Jango, foi imediatamente empossado no Palácio do Planalto.
A cerimônia começou enquanto Darcy Ribeiro ainda estava em seu gabinete e no
momento em que o avião que levou Goulart pousava em Porto Alegre. Era
inconstitucional, portanto. Mas isso não representou problema algum. Os tanques
que guardavam o palácio presidencial pela manhã haviam deixado o local,
atravessado o centro do Rio e estacionado à frente do Palácio Guanabara,
dispostos a proteger o governador Carlos Lacerda, inimigo político de Jango e
conspirador de primeira hora. Lacerda, ao comentar o desfecho do golpe,
declarou entre lágrimas na televisão: “Obrigado, meu Deus, muito obrigado”. O
Brasil estava sob nova direção.
Fonte: Guia do Estudante
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